Carne

- Como estás?

- Bem, Pai. Um pouco cansado com nova rotina. Casa, filhos e trabalho. Ainda nos estamos a adaptar.  

- A tua mãe...

- Sim, não está bem. Nunca a vi assim. 

- Dá-lhe algum tempo. Resiliência em doses hercúleas, como sabes.

- Se eu na Sexta não for convosco, importas-te? 

- Não, Tomás. Mas a tua mãe não vai gostar.

- Odeio funerais, sabes bem. Entendo perfeitamente que para algumas pessoas seja a forma mais natural de lidar com o luto. Preenche-se o vazio, em conjunto. Entendo tudo isso, mas só consigo sentir nojo.

- Nojo?  

- Sim. É a única altura em que não consigo pensar na pessoa enquanto pessoa, mas sim num bocado de carne que, lentamente, vai apodrecendo à nossa frente. Nunca chorei.

- Tens pensamentos concretos, nessas situações?

- Futilidades, na maioria das vezes. Se está calor, no conforto do banco, se o cheiro da pessoa ao lado me está a incomodar... Já pensei em sexo também. Gosto de observar as pessoas que me rodeiam. Consigo perceber quem não quer estar ali, sabes? Às vezes acho que nos identificamos, secretamente. Um olhar tímido que rapidamente desviamos, envergonhados.
(Silêncio)

- Também não gosto de funerais mas sei o quão importante é para ela. Fui sempre que ela me pediu, mesmo quando a pessoa não me dizia muito.

- Já alguma vez preparaste um? Nunca senti nada tão bizarro como olhar para um cardápio de caixões. Escolher o material, a cor, o forro, a quantidade de adornos, enfim. Uma inutilidade. Vale tudo para camuflar a vulgaridade do momento.

- Nunca tive de o fazer, felizmente. Quando foram os teus avós foi o teu tio que tratou de tudo. Até preferi assim, não gosto de me aborrecer com essas coisas. 

- Pois, não entendes. Um nojo absoluto. 

- Tens de perceber que  muitas pessoas sentem-se bem em fazê-lo dessa forma. É quase como se estivessem a proporcionar o derradeiro conforto a quem parte. Dar alguma dignidade à carne. 

- Eu percebo, é apenas um desabafo... É engraçado como a partir do momento em que morremos, o corpo que habitámos toda uma vida deixa de nos pertencer. Podem fazer com ele o que bem entenderem. Usam-no para o conforto de quem fica. (Silêncio) Lembras-te do funeral do avô?

- Sim. Ficaste lá fora com aquela senhora do café, a dar pão às pombas. Conseguiste o que querias, não entrar na igreja. A tua mãe ficou furiosa.

- Odeio pombas. Uma delas tinha-me sujado a camisa, lembras-te? Nunca te disse, mas incomodou-me mais o facto de teres passado o resto do dia a fazeres piadas com aquilo. O avô ainda estava a arrefecer. 

- (com um sorriso) Lembro-me bem... Jantámos todos em casa da tua tia. Bebes mais um copo, antes de ires?
  
- Não posso, Pai. Está a ficar tarde. Gostei deste bocadinho.

- Vemo-nos Sexta? 

- Sim, pela mãe. Embora sinta que te tenha celebrado agora mesmo. Amanhã ajudo-a escolher um caixão simples, algo que não te envergonhe. 

- Sem ouro, por favor. 

- Deixa comigo.

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