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Carne

- Como estás? - Bem, Pai. Um pouco cansado com nova rotina. Casa, filhos e trabalho. Ainda nos estamos a adaptar.   - A tua mãe... - Sim, não está bem. Nunca a vi assim.  - Dá-lhe algum tempo. Resiliência em doses hercúleas, como sabes. - Se eu na Sexta não for convosco, importas-te?  - Não, Tomás. Mas a tua mãe não vai gostar. - Odeio funerais, sabes bem. Entendo perfeitamente que para algumas pessoas seja a forma mais natural de lidar com o luto. Preenche-se o vazio, em conjunto. Entendo tudo isso, mas só consigo sentir nojo. - Nojo?   - Sim. É a única altura em que não consigo pensar na pessoa enquanto pessoa, mas sim num bocado de carne que, lentamente, vai apodrecendo à nossa frente. Nunca chorei. - Tens pensamentos concretos, nessas situações? - Futilidades, na maioria das vezes. Se está calor, no conforto do banco, se o cheiro da pessoa ao lado me está a incomodar... Já pensei em sexo também. Gosto de observar as pessoas que me rodeia

Recordar

– Sinto, importo-me e revejo mais do que todos. O mundo é meu, o pensamento o domino. Abomino a felicidade pura! Gosto é da dura lembrança sem cor. Finjo Amor. – Estás errado de tal maneira que me magoa e me fere a minha sensibilidade. A verdade é que a mente é doente, e idealiza uma coisa que é nada, mas que pode ser tudo: Eu! O pretérito já foi, existiu, mas nem se sabe muito bem se existiu realmente. O que é assente é que a memória trai mas a imaginação cria. – (risos) Que ridículo! Não tens sequer noção de como é bom recordar! Sonhar não te faz viver, apenas ilude-te. Agora voltar atrás... Ai!, sim, isso sim é morrer e viver, é ressuscitar e renascer, é reviver e morrer de novo. É triste, é extraordinário. É o que quiseres que seja. Mas o passado é pesado e o futuro é um fardo, porque o passado pode-se repetir no futuro e o futuro é condicionado pelo passado. Ou seja, não há futuro sem passado. Não há ser amado sem ser recordado. – Venceste-me Passado. De ti dependerei, é

Bom menino

– Vó, quantos anos tens? – 73, filho. – Isso é muito, não é? – Depende da perspectiva, mas dizem que sim. – Eu também vou ter esses anos todos? – Se Deus quiser, sim. – E porque é que Deus não há-de querer? – Vai querer. Tens que ser um bom menino. – Eu sou um bom menino, não sou Vó? – Até agora tens sido, és a minha riqueza! – Então Deus vai querer que eu tenha, um dia, os anos que tu tens. – Eu acredito na sua bondade. – Sabes ‘Vó, sinto falta da mãe. – Eu também, filho. Que Deus a tenha em bom descanso.  

Quem és?

– Quem és? Conheço-te? – Se pensares bem, lá no teu íntimo perceberás que sim. Porque choras? – Não tens nada a ver com isso. De onde vens? Como vieste aqui parar? – Do mesmo sítio de onde tu vens. Creio que foste tu que me chamaste. – Eu sou a luz quando se apaga e sou oriundo de mim mesmo. Repito: quem és e de onde vens? – Eu sou a luz quando se acende e sou oriundo de ti mesmo! – Fizeste-me rir, mas não devia, não estás a ter piada. – Pois, agora sorris, quando há pouco choravas. Quem terá então sido então impiedoso ao ponto de te fazer chorar? – Chorava por ser o que sou, continuo chorando por dentro. Quero ser luz, quero deixar de ser quase luz. Sorri por me teres iluminado com a tua aparição, nem que por momentos. – Chora! Não sorrias. Chora! – Ninguém me diz que deva chorar. Por que é que tu o fazes? – Porque só assim te lembrarás de que um dia não foste luz. Sorrindo banalizas o momento negativo por que passas, sorri quando tens que

Cíntia

– Já não te via há algum tempo. Tinha saudades tuas. Por onde tens andado? – Aqui e acolá, sem rumo definido. – Apercebi-me agora que é sempre noite quando te vejo... – É um facto. Durante o dia gosto de estar com outros amigos, apanhar sol, ser livre. – Ah! O quanto te invejo! A constante pressão social de que somos alvo e as obrigações do dia a dia colidem com a minha vontade de ser livre, verdadeiramente livre, assim, como tu. – Podes sê-lo, Francisco. Basta que renuncies ao que te aprisiona. – Não é assim tão simples. Algo tão primitivo como a alimentação mo impede. Não posso viver de esmola ou do que aparece. – Então não te queixes. – Tens razão. Eu fiz uma escolha e tenho que assumi-la, saber viver em paz com ela. Mudando de assunto, não consigo deixar de olhar para ti: a tua beleza é hipnotizante, sobretudo os teus olhos. – Ó, pára com isso que me deixas desconfortável. Estou com vontade em fazer xixi. – Te

Podemos Conversar?

– João, vamos conversar? – Agora? – Sim, agora, se possível. – Receio que não seja coisa boa. Quando me vens com esse pedido antecipo algo sério. – É um lugar comum. Como se conversar não fosse o que de mais fascinante existe na relação humana, como se não fosse isso que melhor e de forma mais evidente nos distingue dos outros seres. – Concordo, Sofia. – Então, podemos ou não conversar? – Vamos lá, embora já o estejamos a fazer. Qual o tema então? – O tema é esse. – Hein? Estás a deixar-me confuso. – Conversar. Temos que conversar sobre o facto de não conversarmos. – Muito bem. Porquê isso agora? – Creio que a nossa relação está a ser prejudicada por essa ausência de diálogo na medida em que as nossas possíveis angústias, frustrações, debilidades, receios, conflitos interiores... Enfim... não estão a a ser trabalhadas através da partilha. Há uma terapia de casal que todos os dias podemos colocar em prática se conversarmos, sobre nós e s